E ANTES DA AVIAÇÃO ERA ASSIM...

A Silveira era uma povoação pacata, nos anos de 1953. A terra era saudável e bastante fértil. O facto de se encontrar junto ao mar, não prejudicava o seu cultivo. A água das ribeiras não era poluída. Podia beber-se directamente da ribeira sem problemas. As couves, as batatas, os feijões, o milho, que dava a farinha para o pão de milho e a rama para o gado, criavam-se alguns porcos que se guardavam em talhas próprias e asseguravam alimentação, que apesar de não ser muita era a suficiente. Sem falar nos peixes do mar que eram levados à aldeia pelos peixeiros. Vivia o povo da cultura da terra. O povo era trabalhador e pacífico. As autoridades não tinham grandes trabalhos, as portas das casas podiam ficar abertas, pois não havia na época roubos que o justificassem, nem o senhor Prior tinha razões de queixa dos seus paroquianos. Foi neste meio que nasci, em meados de 1953, filho de um agricultor e de uma doméstica.
Essa infância vivida em plena natureza marcou-me para toda a vida. Nunca o deixarei de recordar e transmitir aos meus filhos. Apesar de nunca ter participado muito nas tarefas do campo, nunca deixei de ser apegado à terra, à vida rural, ao fundo agrícola da minha família e da minha infância.
O rapaz que algumas vezes terei ajudado o meu pai e avô em pequenos trabalhos de lavoura, descalço a regar a horta, continua dentro de mim. O espírito de independência que levara os bons rurais a labutar incansavelmente para manter vida limpa e a cabeça levantada, também se mantêm no meu feitio.
A Terra era essencialmente agrícola, onde a riqueza principal era a agricultura. Toda à gente daquela região vivia do campo à excepção do Prior, do Regedor e do Farmacêutico. Aliás estas eram as pessoas mais importantes da terra.
Os meus avós e pais não eram excepção e viviam da agricultura. Felizmente para nós, os meus avós tinham bastantes terrenos agrícolas e as dificuldades da vida eram bastante atenuadas se a comparação for feita com quem tinha de trabalhar à jorna , como era o caso dos que não tinham terras para amanhar.
Todo o cenário deve reportar-se aos anos 50 para podermos entrar dentro do mundo que se vivia na altura.
A pobreza era um estatuto normal e só raras excepções fugiam a esta regra. Nesse tempo era normal, e como a grande maioria das pessoas, nunca tinham saído da terra onde nasceram, não estranhavam muito este tipo de vida. Não nos podemos esquecer que não havia sequer televisão e a rádio não era para o bolso de todos.
Os meus tios, irmãos da minha mãe, trabalhavam com o meu avô Augusto até muito tarde e só bem depois de fazerem tropa começaram a dedicar-se a outras vidas. O meu Padrinho Luís só depois de casar saiu da terra. O meu Tio Chico e Tio Zé sempre por lá viveram apesar de terem vidas diferentes. Um era também agricultor e o outro era funcionário da Câmara de Torres Vedras. A minha vida teve também algumas influências desses meus tios que eram muito divertidos. Eram homens de muito trabalho mas quando se juntavam em família divertiam-se bastante e dispunham muito bem, qualquer ambiente que os rodeasse.
Foi num ambiente destes que nasci e fui educado.
Quando entrei para a escola primária ensinava-se assim o que é, a Pátria:
Menino, sabes o que é a Pátria?
A Pátria é a terra em que nascemos, a terra em que nasceram os nossos pais e muitas gerações de portugueses como nós. É a nossa Pátria todo o território sagrado que D. Afonso Henriques começou a talhar para a Nação Portuguesa, que tantos heróis defenderam como o seu sangue ou alargaram com sacrifício de suas vidas. É a terra em que viveram e agora repousam esses heróis, a par de santos e de sábios, de escritores e de artistas geniais. A Pátria é a mãe de nós todos os que já se foram, os que vivemos e os que depois de nós hão-de vir. Na Pátria está, meu menino, a casa em que vieste à luz do dia, o regaço materno que tanta vez te embalou, a aldeia ou a cidade em que tu cresceste, a escola onde melhor te ensinam a conhecê-la e a amá-la, e a família e as pessoas que te rodeiam. Na Pátria estão os campos de ricas searas, os prados verdejantes, os bosques sombreados, as vinhas de cachos negros ou de cor de ouro, os montes com suas capelinhas brancas votivas. A Pátria é o solo de todo o Portugal, com as suas ilhas do Atlântico (Açores e Madeira, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe...), as nossas terras dos dois lados de África, a Índia, Macau, a longínqua Timor. Para cá e para além dos mares, é a nossa Pátria bendita todo o território em que, à sombra da nossa bandeira, se diz na formosa língua portuguesa a doce palavra Mãe!.... Livro de Leitura da 3ª Classe, Porto Editora, Lda., 1958, pp.5-6
A nossa querida Pátria
Ao vermos a enorme extensão do Império Português, admiramos o heroísmo com que os nossos antepassados, - sábios, marinheiros, soldados e missionários, - engrandeceram a Pátria. Por ela atravessaram mares desconhecidos, sofreram as inclemências de climas insalubres e travaram lutas cruéis em paragens longínquas. Aprendamos a lição do seu esforço, para amar e servir, como eles, a nossa querida Pátria. Livro de Leitura da 3ª Classe, Porto Editora, Lda., 1958, p. 11
Os valores mais nobres eram transmitidos de geração em geração, de pais para filhos. Esses valores repercutiam-se basicamente na simplicidade, humildade, honestidade, e tantos outros que eram normais naqueles tempos duros de sobrevivência. A família tradicional era o centro do mundo e depois, havia os vizinhos, mesmo ali ao lado.
Cresci, ajudado pelos meus avós paternos e maternos. Vivia na casa dos meus avós paternos e foi lá que fui educado até iniciar os estudos após a 4ª classe. Os meus pais sempre viveram na casa desses meus avós até eles serem vivos, depois disso, por lá continuaram como casa própria.
Esse ambiente familiar era como um clã bem fechado em que nos defendíamos com um espírito de corpo muito grande, em que um trabalha para todos e todos cuidam de um.
Em criança, até aos 5 anos de idade, a minha memória não me ajuda muito, mas tenho uma vaga ideia que era muito feliz. Nunca, apesar de ser filho único até ao momento, senti falta de companhia. Ficava em casa com a minha avó enquanto os meus pais iam trabalhar para o campo com o meu avô. Atente-se que era o meu avô o chefe da casa e o meu pai seguia as suas directivas. O meu pai sempre teve alguma protecção porque era filho único. Tinha um meio-irmão, o meu tio Padre João ,que estava sempre fora a desempenhar as suas tarefas de sacerdote. Esse meu tio Padre, apesar de nunca me influenciar directamente, eu via nele uma pessoa diferente pois era um dos únicos que saiu da terra em busca de outros horizontes e conseguiu. Viajou por todo o mundo e estudou também em vários Países da Europa.
A minha avó ficava em casa, na lida da casa e, em simultâneo, servia de ama para mim. Quando me refiro à minha avó, faço-o sempre em referência à minha avó paterna pois foi com essa que fui criado e educado. A outra avó, apesar de viver a cinco ou dez minutos de minha casa, pouco interferência teve na minha educação directa.
Nesse período da minha vida, tudo era muito fácil para mim porque não tinha a noção espacial do que era o mundo que me rodeava.
Cedo iniciei a minha educação religiosa em virtude de estar inserido numa família muito religiosa. Toda aquela terra era bastante praticante. Arriscaria a dizer que toda a gente ia à missa ao Domingo. Fazia parte da cultura local e era normal, todos ter muita ligação com a Igreja e as cerimónias da Igreja paroquial. A Igreja nova da Silveira só apareceu em 1955, pois até aí existia a “velha” Igreja da Silveira . Não existia mais nada naquela terra para além disso. Durante a semana, as pessoas trabalhavam de sol a sol até ao Sábado e só descansavam ao Domingo para ir à missa ou outras cerimónias religiosas daquela época. Depois da Missa, havia um pequeno mercado em frente à Igreja, onde as pessoas faziam alguma troca de produtos, onde se contratavam algumas pessoas para trabalhar durante a semana e onde se faziam por vezes alguns jogos da época. Havia a banco do peixe, ao ar livre, onde as donas de casa iam comprar uns carapaus ou umas sardinhas e um ou outro pargo cinzento, mas não podia ser todos os Domingos porque, era caro. Nesse tempo era normal só haver carne ao Domingo, os meus pratos predilectos eram o cozido à Portuguesa ou o coelho estufado. As carnes, normalmente eram produto caseiro. As pessoas daquele tempo, conseguiam criar os animais que consumiam.
Enquanto a minha mãe ia comprar o peixe ou outros produtos, eu aproveitava e ia dar uma voltinha na bicicleta do meu tio António Pinheiro, que sendo na altura, homem de algumas posses, até tinha uma bicicleta. Eu e os meus primos, disputávamos essa bicicleta entre nós como se fosse o bem mais apetecido. Aprendemos a andar nessa bicicleta, em redor da Igreja, mas com os dois pés debaixo do quadro, porque era muito grande, para crianças daquela idade.
Em frente ao largo da Igreja havia a loja e taberna do “Ti” João Roque, onde os homens “matavam o bicho” antes de entrar para a Missa. Esta expressão era comummente utilizada pelas gentes daquele tempo e queria dizer, beber um cálice de aguardente com açúcar. Nem todos tinham esta prática, felizmente.
O ambiente das tabernas era essencialmente constituído por homens que falavam sobre as lides do campo e bebiam uns copos. Falavam de futebol e dos trabalhos do campo, das colheitas, se eram boas ou más, se as vinhas estavam em boas condições e os batatais estavam verdejantes. Nem sempre a harmonia nas tabernas era constante. Não era inédito haver uma ou outra zaragata entre gente menos bem formada e essencialmente quando se encontravam alcoolizados. As crianças pouco tempo estavam com os pais pois conviviam muito uns com os outros. Dirigiam-se aos pais ou aos familiares directos, para pedir cinco tostões para comprar pevides e tremoços. A “Ti” Angelina, tinha uma bancada mesmo em frente à taberna do “Ti” João Roque e era lá que nós comprávamos as pevides e tremoços. Cinco tostões dava para comprar uma medida de cada qualidade e ainda sobravam dois tostões para comprar rebuçados na loja.
Era à saída da missa que as mulheres ficavam a conversar umas com as outras, a mostrarem as gracinhas dos filhos e a relatarem o que eles já sabiam fazer. Parece-me que eu era muito querido e as amigas da minha mãe gostavam de me pegar ao colo. Disputavam entre elas quem é que ficava comigo mais tempo. Os homens por sua vez falavam uns com os outros e não havia conversas com as respectivas mulheres.
Na Igreja havia um corredor ao meio e as mulheres ficavam do lado direito no sentido da entrada e os homens ficavam do lado esquerdo. Não havia misturas entre sexos opostos. Era assim naquele tempo.
Os rapazes namoravam as raparigas à janela da casa dos pais, a rapariga dentro de casa e o rapaz na rua. Grande parte das vezes, a mãe ou a avó estavam por perto não fosse a rapariga ter alguma falta de ar e ela a pudesse socorrer de imediato. Claro que este não era o objectivo mas sim prevenir “alguma falta de respeito” como elas diziam.
Depois dos 5 anos de idade já me recordo de mais algumas coisas. Entretanto, nasceu o meu irmão Vasco e assim o meu protagonismo lá por casa diminuiu ligeiramente, mas nunca me senti posto de lado. Naquele tempo, os pais tinham de trabalhar tanto, que não dava para perderem muito tempo com os filhos. Não havia oportunidade para que os pais pudessem criar ciúmes aos filhos mais velhos com os filhos mais novos. Os pais chegavam do campo, iam fazer o jantar, rezava-se o terço e logo de seguida para a cama porque no dia seguinte a vida continuava dura como no dia anterior. As noites na aldeia eram monótonas e não havia nada para fazer. Não havia TV nem rádio na maior parte das casas e as conversas giravam à volta do trabalho. Na grande maioria das casas não havia electricidade sequer. Já eu era crescido quando esses eventos apareceram na casa dos meus avós. Política, era coisa lá das pessoas da cidade ou da vila. Essas tinham tempo para essas conversas. Por aqui e na minha casa não era excepção, só se transmitiam princípios de educação pura, sem influências de qualquer ordem.
Na escola primária era bom aluno e não dei problemas aos mais pais nessa área. Cresci junto com os alunos do meu tempo. Esses foram os meus companheiros durante os anos desse ensino. A grande maioria deles, ficou por aí em termos de estudos pois os pais não tinham capacidade de os meter a estudar. Acabavam a escola primária e iam ajudar os pais nos campos a trabalhar ou começavam a praticar qualquer ofício como assim se chamavam às profissões não agrícolas.
Durante este período da vida, era usual ir passar alguns tempos nas férias em casa de alguns familiares que viviam fora da terra. Ia muitas vezes para casa do meu Padrinho Luís na Amadora e para casa da minha Tia Belmira em Cascais . Era ainda miúdo, com cerca de sete ou oito anos e já viajava sozinho para a Amadora. Fazia viagens para casa do meu padrinho que por lá tinha a sua vida. Para ir à Amadora, teria de ir a pé para Secarias, povoação a cerca de 1 km da minha casa, esperava pela camioneta da carreira, como assim se chamava e ia até Torres Vedras. Parava em frente à estação de comboios e entrava, passado algum tempo para uma automotora a diesel que ia até ao Cacém. Aí mudava de comboio e seguia para a Amadora. Na estação da Amadora saía e caminhava por uns descampados a Norte da estação, até à casa do meu Padrinho Luís, que era um homem de negócios naquela terra. Tinha uma casa de pasto e um pouco mais acima um lugar, que era um sítio onde se vendiam legumes, frutas e peixe. Na Amadora, passava alguns dias em casa do meu padrinho. O meu dia a dia por lá resumia-se a acompanhar o meu Padrinho, para onde quer que ele fosse. Era usual ir à praça da Ribeira em Lisboa, cerca das cinco horas da manhã fazer as compras para o lugar de venda. O contacto com aqueles vendedores era interessantíssimo. O meu padrinho tinha muito orgulho em mim e apresentava-me a essas pessoas com mais orgulho, do que se eu fosse filho dele. A linguagem daquelas pessoas era bastante típica e as relações entre eles eram interessantes. Havia respeito pelo trabalho de cada um, fosse ele talhante, vendedor, comerciante ou peixeiro. As relações eram bastante humanas e era normal, conversarem entre eles dos problemas pessoais.
Nesta altura da minha vida e com estas visitas a casa do meu Padrinho comecei a ver que havia mais mundo para além daquele em que me habituei quotidianamente.
As primeiras visitas que fiz a Lisboa, foram com o meu tio P.João. Saía da Amadora de comboio e ia até Lisboa. Aí, encontrava-se o meu tio que me levava a conhecer os locais de maior interesse na cidade. Tudo o que conheci em Lisboa deveu-se à boa vontade desse meu tio.
Cedo, e porque o meu Tio Padre andava por outras terras e viajava muito, comecei a pensar que queria ir para um seminário para ser padre como ele para poder sair da Terra onde nasci e ir conhecer outros horizontes. Depois da escola primária, consegui convencer os meus pais que queria ir para padre.
Ingressei no Seminário Patriarcal de Santarém em Setembro de 1963. Ordem na vida. Ordem no trabalho. Ordem nas ideias. Algo devo nesse ponto ao seminário. Nesta fase apetece-me citar alguém que não vou referir o nome por não ser politicamente correcto: “Do Seminário nada digo. - Há pessoas que desconhecem que pode haver na alma dos outros coisas inolvidáveis e sagradas, que a gente esconde cuidadosamente das vistas dos tolos e dos maus, porque não podem compreendê-las nem são capazes de senti-las. Pobre, filho de pobres, devo àquela casa grande parte da minha educação que de outra forma não faria; e ainda que houvesse perdido a fé em que me lá educaram, não esqueceria nunca aqueles bons padres que me sustentaram quase gratuitamente durante tantos anos, e a quem devo, além do mais, a minha formação e disciplina intelectual.”
Poderei afirmar exactamente o mesmo da minha passagem pelo Seminário de Santarém.
Começava um novo capítulo da minha vida. Se tinha tido uma educação esmerada no sentido dos valores, aqui continuei a tê-la e mais aprofundada.
Igreja e Estado eram os baluartes da época e andavam de mãos dadas. O Cardeal Cerejeira e António Salazar, eram as figuras da época, que não vou descrever aqui, pois, esses tempos não fazem parte dos objectivos destes escritos.
Nesta época o corporativismo salazarista inspirou-se muito na experiência italiana, mas não conseguiu mobilizar o povo. Ficou limitado ao camponês, pequeno produtor, pequeno comerciante. Tudo era pequeno e sem horizontes externos. Tudo se resumia ao futebol do Benfica, ao fado da Amália e às aparições de Fátima.
O governo de Salazar foi, mais um, na História Portuguesa, a incentivar a emigração, e pelo que se vê até ao momento, não vai ser o último, alimentando com isso a diminuição do desemprego e a entrada de divisas que tanta falta faziam ao País.
A emigração foi uma necessidade, motivada pelo desejo de ganhar mais e essencialmente para fugir da miséria e à Guerra colonial. As colónias eram fundamentais para a nossa economia mas isso não foi suficiente para impedir a guerra colonial, iniciada em Fevereiro de 1961 em Angola, continuando para Guiné-Bissau em1963 e Moçambique em 1965. Com a continuação da Guerra colonial, a pressão das Nações Europeias para a libertação dos Povos Africanos e o descontentamento interno do Povo que mandava os seus filhos para a Guerra, previa-se que algo iria mudar.
Com a entrada para o seminário, muito mudou na minha vida. Da pacata aldeia onde vivia, passei com dez anos de idade a viver num colégio interno com cerca de trezentos alunos de toda a parte do País. Santarém, era na altura uma cidade que além de seminaristas, tinha a Escola Agrícola, um quartel de Cavalaria e o Colégio Andaluz. Estas instituições não se misturavam pela especificidade a que cada uma se dedicava.
Cedo percebi que a minha vocação para padre estava um pouco adormecida. Cedo entendi que não se podia copiar nos pontos. Cedo compreendi que nos recreios não se poderiam dizer palavrões. Cedo me senti como peixe fora de água.
A vida quotidiana no seminário, se bem me lembro, começava às sete horas da manhã com as rotinas normais de levantar, vestir, arrumar os haveres pessoais, fazer a cama e às sete horas e trinta minutos íamos para a missa. Às oito horas e quinze minutos, era a altura de sair da missa e ir para o pequeno-almoço.
Aquilo que se possa pensar que seria complicado ter trezentas crianças dentro de uma sala a comer e fazer barulho, ali, nada isso era verdade. Durante as refeições, o único ruído que se ouvia era um ou outro talher mais desafinado, porque além disso o único som naqueles dois salões era o que vinha das colunas de som com música clássica. As mesas do refeitório eram de pedra e cada seminarista tinha o seu lugar atribuído. Cada perfeito tinha o seu grupo de alunos e ninguém punha o pé em ramo verde.
Após a refeição, saíamos um pouco, para o parque de recreio e às nove horas começavam as aulas. As aulas são iguais em qualquer sítio pois para uma criança com dez anos, tudo o que não for jogar à bola, é uma seca tremenda. Só não posso dizer isto aos meus filhos por enquanto, mas é o que eu penso e sinto.
Depois das aulas da manhã, chegava a hora do almoço e repetia-se o silêncio da música clássica. Quando tento dizer aos meus filhos que quando tinha a idade deles, estava sentado num salão com mais trezentos meninos e ninguém falava, eles nem sequer me ouvem porque pensam que já estou velho.
Após o silêncio do almoço, seguia-se o recreio onde se poderia praticar vários desportos. Por vezes e inserido no programa escolar, existiam jogos de futebol, basquetebol, voleibol e andebol.
Durante a tarde continuavam as aulas que eram todas dadas por padres e de seguida íamos para o estudo, que era um período onde mais uma vez imperava o silêncio e tinhas de preparar os trabalhos de casa. No intervalo do estudo havia o lanche que era servido nos átrios do seminário e após o final dos trabalhos de casa, íamos para a capela rezar o terço. Quem queria ser padre tinha de rezar muito e meditar muito.
Após a saída da capela recolhíamos um pouco às camaratas, onde arrumava-mos os livros e roupa e por volta das oito da noite irmos jantar.
A ida para a camarata por volta das nove da noite, dava-nos alguma margem para conversar um pouco uns com os outros mas às nove e meia vinha o perfeito, Padre Fernando, dizia-nos boa noite a todos, apagava as luzes e voltava o silêncio absoluto.
A descrição de um dia normal era como relatada anteriormente e aquilo repetia-se à Segunda, Terça, Quarta, Sexta e Sábado de manhã. As Quintas-feiras eram um dia especial e o Domingo também. O Domingo era passado de uma forma calma, sem aulas, mas com muita missa e oração com algum desporto à mistura.
A Quinta-feira era o dia que todos gostavam muito. Era o dia do passeio, a pé, evidentemente. Íamos normalmente fazer uns almoços no campo, para algumas quintas nas redondezas de Santarém. Usualmente íamos a pé para o Vale de Santarém ou para a zona das Ómnias.
Essas Quintas-feiras eram dias de ar puro, eram dias que todos esperávamos ansiosamente pois a semana era longa e bastante monótona, fechados dentro de quatro muros gigantes, que mal se via a rua, ou pessoas que nela circulavam.
Independentemente desta disciplina séria e com muito rigor organizativo, não deixava de haver espaço ao diálogo, sempre no sentido da formação de futuros homens, futuros padres, futuros cidadãos e essencialmente, muito sentido de responsabilidade por parte de quem tem em mãos, a educação dos filhos, de mães confiantes. Mães que entregaram de alma e coração tudo o que de mais sagrado tinham – Os seus filhos. Delegaram totalmente as suas responsabilidades nas mãos de alguém que, supostamente, lhes devolveria um sacerdote em troca.
Devo àqueles homens, padres, aquilo que sou. Ajudaram-me bastante, pois, poderiam não ter tido tanta paciência comigo. Rápido perceberam que estavam na presença de um miúdo que apesar de querer, não tinha futuro na vocação. Apesar disso, deixaram que fosse eu a decidir sair do seminário após quatro anos. Tudo fizeram para me ajudar mas pelos vistos não estava no caminho certo.
Recordo que cederam a todos os meus caprichos para me darem a liberdade de escolha. Como me sentia um pouco fechado lá dentro, ao fim do segundo ano, deixaram-me andar a aprender a tocar viola, no colégio Andaluz. Atravessava a cidade de viola às costas, e ia ter aulas de viola com uma freira. Nunca consegui aprender nada mas passeie bastante a viola. Por sua vez os meus colegas ficavam lá dentro no seminário a aprender piano. Eles aprenderam piano mas não saborearam minutos de “pássaro fora da gaiola”. Aquelas pequenas viagens que fazia, serviam para ter contacto com a população local e arejar um pouco as ideias.
Mais tarde, pedi-lhes para ir para os Escuteiros, que era mais um pretexto para estar fora daquelas paredes e eles consentiram. Nestes pedidos, andava sozinho e saía também só. Nos Escuteiros passei algum tempo interessante. Rapidamente cheguei a Guia de Patrulha. Habituado à organização do seminário, foi fácil atingir alguma liderança que me permitiu chefiar uma Patrulha com doze ou treze anos de idade. Também foi relativamente fácil conquistar um torneio de Escutas que se realizou na Serra de S. Mamede em Portalegre e cujo prémio foi uma viagem a Espanha.
Na continuação do que comecei por afirmar, cedo percebi que me sentia muito bem fora de portas e que inventava mil e uma razões para isso, apesar de sentir uma ajuda tremenda que aqueles homens me prestaram. Tudo fizeram para que eu pudesse dar azo à minha imaginação.
Passados quatro anos de vida bastante regrada no seminário, fui estudar para o Externato da Luz em Lisboa. Aqui as coisas eram totalmente diferentes.
Fui viver para a Amadora para o apartamento do meu Padrinho Luís que nessa altura já tinha saído para outra região do País mas ainda mantinha em seu poder esse apartamento. Vivia sozinho no apartamento, com catorze anos de idade e aos fins-de-semana e aos jantares durante a semana ia comer a casa de uma família amiga do meu Padrinho. Esse casal ajudou-me bastante enquanto estive nesta situação.
Nessa altura com catorze anos de idade, acabado de sair do seminário e a viver em Lisboa, sem controlo ou exigência, foi um choque demasiado brusco mas incentivador. Costumo afirmar que esta passagem se poderá comparar a uma saída da sauna bastante quente e saltar para o mar do Norte gelado, como fazem os Finlandeses.
A habituação aos usos e costumes daquela zona, nas cercanias de Lisboa, para um rapaz com aquela idade não foi difícil. Difícil foi o facto de quebrar o deslumbramento de estar na cidade, cheia de coisas novas, com muitas luzes à noite, com avenidas cheias de carros, com cinemas, com lojas em todos os sítios e em simultâneo, ter de estudar. Essa parte não foi de facto a mais fácil. Adaptei-me a tudo como um nativo, menos ao estudo.
O ensino no Externato da Luz era bastante rigoroso e como eu não estava a reagir bem ao choque térmico dos estudos, os directores, informaram os meus Pais que era melhor eu ir “estudar” para outro sítio.
As coisas fora do Seminário, eram todas maravilhosas, mas também era necessário estudar. No Seminário não havia muito mais a fazer, mas em Lisboa havia todo um mundo novo à minha espera e foi esse mundo novo que enfrentei muito cedo.
Depois da saída do externato da Luz regressei à Terra Natal e fui estudar para o Liceu de Torres Vedras.
A vida de estudante é mais ou menos semelhante em todo o lado. Existem só algumas diferenças relacionadas com o facto de uns viverem perto dos estabelecimentos de ensino e outros necessitarem de se deslocarem bastante. Também existia muita diferença entre os alunos que vinham das povoações agrícolas e aqueles que eram da Vila. Aqui a diferença refere-se basicamente ao poder económico de uns e outros.
Atendendo aos meus princípios religiosos e formação no seminário, tornei-me catequista da Paróquia da Silveira. Também devido a alguma experiência no Seminário, participei bastante nas actividades da Igreja durante essa fase da minha vida. Era inclusivamente o organista durante a Missa Dominical. Apesar de não ser muito entendido em música, limitava-me a acompanhar o coro da Igreja da melhor forma que sabia.
Esta fase entre os 15 e 19 anos de idade rapidamente passou e foi a época dos namoricos e bailaricos das aldeias. Naquela época não existiam discotecas e a rapaziada jovem limitava-se aos bailaricos das Aldeias.
As deslocações para esses bailes tinham algo de aventureiro, eram normalmente feitas no carro do meu Tio Zé. È claro que não era ele o condutor da viatura. O filho mais velho, Augusto, tirava-lhe o carro da garagem do meu avô, sem ele saber e aí íamos nós. Parece simples esta operação mas tinha algo de complicado. Assim que a noite avançava, os meus tios iam para a cama e os meus primos também. Eu chegaria à casa deles de forma a ninguém notar e quando via que as luzes estavam todas apagadas, batia ao de leve na janela do meu primo e esse era o sinal para reunir. Ele por sua vez, verificava se os pais já estavam a dormir e saía pela janela. Depois íamos à Adega do meu avô, que servia de garagem para o carro do meu tio, e com muito cuidado para não acordar ninguém, pois o meu tio Chico, também ali morava, empurrávamos o Opel Kadet até à estrada principal, cerca de 200 metros e só aí se punha o carro em marcha. A saída era fácil porque era a descer, mas quando regressávamos as coisas eram muito complicadas. Embalávamos bem o carro e o final era empurrado à mão. As estradas ainda eram de areia para complicar mais a situação. O meu primo não tinha carta de condução mas naquela altura àquela hora da noite era raro haver polícia na estrada.
Nunca o meu Tio Zé deu pelas manobras que nós fazíamos, mas de vez em quando desconfiava que a gasolina desaparecia.
Era usual ir diariamente a Santa Cruz a pé. Ninguém tinha transporte e então juntávamo-nos na Cerca e íamos estrada fora, 3,5 km beber um café à Estalagem em Santa Cruz. Dia que não fossemos era um dia sem calendário.
Este tipo de Juventude foi saudável e mentalmente sã, mas muito humilde.